quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede da revolução científica

Em http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/09/14/uma-incomoda-pitada-de-magia/

Uma incômoda pitada de magia

Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede da revolução científica

CARLOS HAAG | Edição 199 - Setembro de 2012

de Londres

© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY

Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg mostrando o pequeno envelope fechado

Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática reação de Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, ao ser questionado sobre a importância do achado das pesquisadoras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima PUC-SP). Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Moore respondeu: "Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos ninguém encontrou".

Trata-se de uma pitada de pó amarelado e com odor pungente embalada num pequeno envelope colado em uma carta de 1675 endereçada ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Oldenburg (1515-1677), vinda da Antuérpia e enviada por um apotecário e alquimista chamado Augustin Boutens. Embora não chame a atenção, é uma valiosa e concreta amostra do alkahest, famigerado solvente universal, que foi alvo de buscas que movimentaram gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert Boyle e Isaac Newton.

Após revelar, em 2010, num Projeto Temático apoiado pela FAPESP, a única receita completa do alkahest ("A agenda secreta da química", Pesquisa FAPESP n˚ 154), de 1661, a dupla encontrou agora, afirmam, "uma primeira amostra real de Ludus composto, um alkahest, de que se tem notícia desde o século XVII". O que é o pó?

Certamente, a Royal Society quer que a amostra seja analisada por um de seus fellows, provavelmente Martyn Poliakoff (ver entrevista na página 25), vice-presidente da instituição. "Apesar da curiosidade pessoal, como pesquisadoras em história da ciência, não pretendemos ir ao laboratório para procurar saber o que seria pelos moldes de hoje o tal pó", fala Márcia. "O que importa é a descoberta de mais uma evidência forte de que uma boa porção das ciências antigas, como a alquimia, persiste mesmo após o surgimento de uma nova visão de ciência (e até fizeram parte na formação desta), mantendo-se na agenda das figuras que supostamente promoveram a revolução científica que originou a química moderna. Há uma história pouco conhecida que conta que essa passagem foi mais suave e coerente e só se encerrou no século XIX", afirma Ana.

Acima de tudo, confirma o credo das pesquisadoras que fazer a história da ciência é arregaçar as mangas e enfrentar a poeira secular dos documentos originais para dar vida a eles. Prova disso, para surpresa de Moore, é que o documento passou pelas mãos da historiadora Marie Boas, responsável, nos anos 1960, pela catalogação da correspondência de Oldenburg, por 15 anos o "faz-tudo" da Royal Society. Diante do pequeno envelope, Marie apenas anotou: "Amostra do que parece ser pirita, anexada ao texto".

"A obra de Marie é impecável, mas, pensando como muitos em sua época, ignorou possíveis interesses alquímicos dos 'novos cientistas' e, assim, terminou por não investigar o caráter hermético das cartas de Oldenburg, o que incluía, por vezes, as 'limpezas' do passado e intervenções pouco recomendáveis", avalia Ana. "Esse achado amplia a visão de que a filosofia química não morreu com o triunfo da visão mecânica e corpuscular. Saber que ainda se perseguiam materiais como o Ludus e o alkahest comprova isso e incluí mais nomes importantes na lista dos que praticavam essas buscas, mesmo alguns que se pensava convertidos ao racionalismo e, mais ainda, ao mecanicismo do século XVII", explica Pyio Rattansi, professor emérito do University College London, que revelou a importância do hermetismo e da Bíblia nas obras científicas de Newton, até então visto como "santo padroeiro" da ciência moderna. "Além dele, outros 'homens de razão' tinham 'segundas agendas' que discretamente continham processos alquímicos", conta Ana.

Essa revisão da história da ciência só veio à tona quando as pesquisadoras, apesar do "canto de sereia" da tecnologia, viram a limitação dos catálogos digitais e se enfurnaram diretamente nos "fundos fechados" do arquivo, enfrentando a incredulidade inicial dos ingleses. "Tínhamos claro que era preciso entender o pensamento dos homens de ciência daquela época. Havia uma espécie de dualidade diante de qualquer fato novo: por um lado, havia a necessidade de manter sigilo, pois, em especial quando se tratava de materiais ou processos de laboratório, muitos eram verdadeiros segredos de Estado. Por outro lado, estava uma das máximas (que, aliás, se mantêm até hoje) da nova ciência, que defendia o saber elaborado por muitos e ao alcance de todos", conta Ana. "Muitos estão se coçando para pôr as mãos nesse conhecimento e sabe-se lá o que farão para vê-lo publicado", escreveu Newton a Oldenburg em 1676. Os meandros "rocambolescos" que as pesquisadoras precisaram vencer para encontrar a receita do alkahest é fruto dessa visão.

"Depois das descobertas iniciais de documentos, consideramos que tudo relacionado ao alkahest na Royal Society estava claro e visível", fala Márcia. Até encontrarem a misteriosa carta de Boutens para Oldenburg. "Já se passaram anos desde que enviei ao senhor uma boa quantidade do Ludus helmontiano, a partir do qual eu produzi o material sulfuroso que anexo abaixo. Confio na sua sabedoria para entender que efeitos ele produz." A referência ao mineral argiloso chamou a atenção de Ana e Márcia. Afinal, o Ludus era base de uma receita do liquour alkahest produzida pelo médico belga Van Helmont (1579-1644), que dedicou sua vida a estudar os obscuros trabalhos de Paracelso para produzir o que seria o "remédio para todas as doenças". Capaz de dissolver qualquer substância sem deixar resíduos, reduzindo-a a seus constituintes primários, o alkahest seria fonte de remédios poderosos, em especial contra os "males da pedra", a litíase renal, a "pedra nos rins", causadora incurável de muitas mortes até o século XIX.

Segundo Van Helmont, era possível, por exemplo, fazer um remédio contra o cálculo urinário pela dissolução do Ludus com o alkahest. Não tanto pelo mineral, mas pela capacidade do alkahest em transformá-lo em fonte de cura. Tudo era fruto de um pensamento milenarista: o solvente seria um presente de Deus quando o mundo se aproximasse do fim", explica o historiador Paulo Porto, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). O Ludus funcionaria como a cápsula plástica que, hoje, envolve as pílulas, permitindo a difusão gradual do medicamento no organismo. O dilema dos alquimistas era justamente garantir que a solvência do alkahest acontecesse aos poucos, não matando o paciente ao tentar curá-lo. "Desde os anos 1640, o objetivo central da ciência inglesa era prolongar a vida das pessoas e o alkahest preparado com Ludus helmontiano seria o remédio indicado para isso", diz Paulo. Para muitos contemporâneos, o rei Charles II criara a Royal Society, acima de tudo, para reunir as maiores cabeças da época a fim de que produzissem "o grande remédio".

© REPRODUÇÃO

Henri Oldenburg: secretário da Royal Society centralizava toda a informação para a Instituição e foi um dos pioneiros nos padrões científicos

Por isso, a carta levantou suspeitas nas pesquisadoras. "Como entender que após procurarem por anos esse 'grande remédio' não houvesse registros nas atas da Royal Society da chegada de uma amostra de seu componente? Tudo indicava que estávamos diante de um 'segredo' valioso para os fellows da instituição", diz Márcia. Era preciso, então, entender melhor a relação de Oldenburg e Boutens. A primeira pista foi uma carta de setembro de 1667, escrita para Boyle logo após o secretário sair da prisão, onde foi encarcerado pelos seus contatos "excessivos" com o exterior. Logo se descobriu que a correspondência intensa era parte de seu trabalho. Oldenburg trocava cartas com quem pudesse ter ou conhecer algum segredo sobre a "Arte". Os vários espiões que espalhou pela Europa o informavam sobre qualquer experiência.

Sintomaticamente, a carta para Boyle foi a primeira coisa que fez após sair da prisão. "O senhor menciona uma caixa que, creio, foi endereçada a mim. É Ludus da Antuérpia. Sinta-se livre para abri-la e depois enviá-la a mim, com sua opinião se é o Ludus genuíno." Várias cartas mais tarde, com o mesmo teor de súplica humilde, não foram suficientes para Boyle atender a seu pedido e Oldenburg nunca pôs as mãos na preciosa caixa. Os arquivos foram revelando aos poucos os elos do secretário e Boutens, o alquimista da Antuérpia. Em novembro de 1667, Oldenburg escreveu ao alquimista: "Soube por um amigo de Paris (certamente um de seus espiões) de sua grande predisposição para a curiosidade e sua inclinação especial pela sólida filosofia que se fundamenta na observação e os experimentos que estamos tentando estabelecer aqui na Royal Society. Também fui informado de suas tentativas infatigáveis de descobrir os segredos da natureza pelo bom caminho da química".

A sedução epistolar vai adiante. "Gostaria que o senhor soubesse como os ingleses admiram operações químicas feitas por homens de bom senso que são livres dos preconceitos vulgares impostos pelo mundo por algumas pessoas que pretendem falar dogmaticamente sem nenhuma experimentação crítica preliminar, como o excelente senhor Boyle achou necessário fazer em seu Sceptical chymist (1661)", continua. "Sabemos que há Ludus helmontiano em abundância na sua região: peço ardentemente que nos envie para Londres por mar." Em dezembro chegou a resposta de Boutens: "Vou enviar mais de 70 quilos do Ludus com a descrição do método que utilizo para fazer o remédio". O pagamento da empobrecida Royal Society foi feito em livros, cobiçados por alquimistas. A carta foi recebida com grande entusiasmo pelos membros da Royal Society, assim como outra carta escrita por Boutens alguns meses depois, descrevendo os lugares onde se podia encontrar o Ludus. Essa correspondência, porém, não teve continuidade e apenas em junho de 1675 aparece uma nova carta de Boutens, justamente aquela em que está afixada a amostra do "pó secretíssimo".

Oldenburg, porém, não respondeu à carta. De início, as pesquisadoras atribuíram a atitude nada típica do secretário ao excesso de... ( continua em http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/09/14/uma-incomoda-pitada-de-magia/ )

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