Luta contra o sol
Pesquisadores, médicos e moradores de um povoado se mobilizam para controlar uma doença hereditária agravada pela exposição à luz do diade Araras, Goiás
Djalma Jardim parece feliz, depois de uma longa depressão que o impedia de sair de casa. Hoje, animado, ele conversa com os amigos e cuida de sua sorveteria nova, com uma varanda ampla, no povoado de Araras, a 260 quilômetros de Goiânia. Ele prefere os dias ensolarados, que trazem mais pessoas em busca de sorvetes de milho, abacate ou graviola, mas sabe que ele próprio não pode tomar sol. Djalma tem uma doença genética hereditária conhecida como xeroderma pigmentosum, que atinge principalmente as partes do corpo mais expostas à luz do sol.
Seu rosto está bastante transformado. Uma prótese externa ocupa o lugar do lábio superior, do nariz, de parte das maçãs do rosto e do olho direito, que tiveram de ser retirados. Aos 37 anos, Djalma tem um carro, mas durante anos, para se proteger do sol, andava de bicicleta coberto da cabeça aos pés com uma espécie de cabine de papel pardo com uma abertura para ver à frente.
Ironicamente, em um lugar muito quente nesta época do ano e escaldante em janeiro vive a provavelmente maior concentração mundial de pessoas bastante sensíveis à radiação ultravioleta do sol. Dos cerca de mil moradores de Araras, 22 – com idade entre 9 e 78 anos – sabem que têm xeroderma pigmentosum ou XP. Alguns apresentam apenas a pele ressecada e com manchas, enquanto outros tiveram de implantar próteses no rosto e falam com dificuldade. Alguns se cuidam, evitando o sol, enquanto outros renegam a doença, sob a alegação de que não podem deixar de trabalhar durante o dia em suas terras. Quase todos ali vivem da agricultura ou da pecuária.
Durante três dias, no início de agosto, pesquisadores de São Paulo e do Rio de Janeiro se reuniram com biólogos da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, com médicos dos dois principais hospitais de Goiânia e com os moradores de Araras. Em conjunto, planejaram os exames que devem permitir a identificação da mutação responsável pela xeroderma nos moradores de Araras e ajustes no atendimento médico a essas pessoas.
"Aqui em Goiás este é um problema de saúde pública", afirmou Carlos Menck, geneticista do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), em uma apresentação para biólogos e médicos no início de agosto na UFG. "Gostaria de convidar vocês a trabalharem com esse problema. O que fizermos pode ajudar muito as pessoas com XP." Da plateia, a médica dermatologista Sulamita Chaibub, à frente de uma equipe multidisciplinar do Hospital Geral de Goiânia que atualmente trata de 25 pessoas com XP, pediu: "Mandem mais pacientes para nós, por favor".
A XP é uma doença rara, para a qual não há medicamentos específicos, causada por mutações prejudiciais em genes que, quando normais, induzem a produção de proteínas que corrigem os danos provocados no DNA pela radiação ultravioleta do sol ou de lâmpadas. Sem essas proteínas, o DNA acumula danos que podem originar tumores. As pessoas com alterações nesses genes de reparo apresentam risco mil vezes maior de terem câncer de pele e maior propensão para outros tipos de câncer, lesões oculares e problemas neurológicos que as pessoas sem essas mutações.
Por todo o país, o total de casos diagnosticados não chega a uma centena, mas estimativas preliminares, com base na prevalência de outros países, indicam que mil pessoas no país podem ter a doença, facilmente confundida com outras – no início do século passado era vista como uma forma de hanseníase e hoje pode passar como alergia ao sol ou câncer de pele. "Como os registros são escassos, o alcance desse problema na população ainda é desconhecido e subestimado", diz Januário Bispo Cabral Neto, geneticista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que esteve em Araras pela primeira vez em agosto.
Moçambique, uma origem comum
Menck acredita que está na pista da provável mutação, que parece ser diferente das já conhecidas, e ainda este ano ele pretende iniciar o sequenciamento de um conjunto de genes de 18 moradores de Araras em busca de alterações nos oito genes de reparo de DNA já associados à doença. "A caracterização de uma mutação pode ajudar a identificar o problema precocemente, dando diretrizes sobre como as pessoas e as famílias devem ser acompanhadas, para evitar que a doença se agrave", diz a médica Maria Isabel Achatz, do Hospital do Câncer A.C. Camargo, em São Paulo.
"Ao menos um dos oito genes com mutações que causam XP deve ter vindo com os escravos de Moçambique", diz Menck. Com sua equipe, ele identificou a mutação responsável pela doença em três famílias brasileiras, mas, reconhece, "o ganho para os pacientes, em termos de tratamento, foi muito pequeno, infelizmente". A seu ver, talvez o benefício para os moradores de Araras seja maior, ao indicar a origem genética e a evolução possível da doença. Historicamente, o povoado começou a se formar por volta de 1705 com a chegada das famílias Freire, Jardim e Gonçalves, que compraram terras na região, pertencente ao município de Faina. "Dona Clementina, uma matriarca do povoado, dizia que o avô dela, Augusto Gomes, tinha a 'pele ruim', indicando que os primeiros casos de xeroderma podem ter surgido há pelo menos 150 anos, provavelmente por meio de casamentos entre primos", diz ele. Clementina Gomes Jardim morreu aos 102 anos, em 2010, sem a doença transmitida para alguns de seus filhos e netos.
Em 1963 chegaram mais seis famílias, vindas de Hidrolândia, município a 240 quilômetros de distância. Aos 71 anos, magro, baixo, sorriso largo, Lázaro Alexandre da Silva chegou nesse ano e se lembra de ter visto familiares com o que chamavam de câncer de pele. Ele próprio tem uma forma leve de xeroderma, que lhe deixou manchas escuras nos dois pés, entre os tornozelos: "Difícil curar", ele diz.
Aparentemente Lázaro Silva não se abate: quem tem doenças que afetam a aparência normalmente convive com a discriminação, mas em Araras as pessoas com XP, mesmo em estágio avançado, são tratadas com naturalidade, trabalham e convivem com os amigos e familiares. Todo dia ele acorda antes das seis da manhã para ordenhar as vacas, atualmente 16, que nesta época de seca lhe rendem 20 litros de leite. Sua esposa, Divina Rosa da Silva, baixa, encorpada, de intensos olhos azuis, às vezes assume o lugar do marido, sobe na charrete e leva o leite do dia ao laticínio do povoado. Ela sabe: "O sol não faz bem para ele. Quando ele está muito no sol, tem tonteira. Ele tem pressão baixa".
Fugindo do sol
Para evitar o sol e adiar o aparecimento dos sintomas, as pessoas com XP usam – ou deveriam usar – roupas longas, de preferência com alta capacidade para filtrar a radiação ultravioleta, bonés ou chapéus largos, óculos escuros e protetores solares com fator de proteção solar mínimo de 60. A equipe de Menck, em colaboração com uma empresa de cosméticos, comparou a eficiência de 17 produtos comerciais, com fator de proteção de 1,5 a 60, e concluiu que em geral os protetores solares são eficientes para proteger contra os efeitos indesejados da radiação ultravioleta.
O acesso aos cremes, porém, nem sempre é fácil. "Muitos pacientes chegam aqui em estado grave porque não têm dinheiro para comprar protetor solar", conta Maria Isabel. "Seria fundamental que o fornecimento de filtro solar fosse gratuito para todos que têm xeroderma pigmentosum no Serviço Único de Saúde (SUS). O custo seria muito menor do que o tratamento de um melanoma."
Outro problema é que, mesmo para as pessoas com risco menor de câncer de pele, os... ( continua em http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/09/14/luta-contra-o-sol/ )
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